terça-feira, 24 de março de 2015

Século XX (e Início do XXI): Um Século de Contradições

Escrito pelo Diretor do Grupo Projetar Roberto Guimarães.


O século XX ficou conhecido como o século das contradições. Incluo também nessa denominação o início do século XXI. Os aspectos contraditórios mais aparentes estão diretamente relacionados com o desenvolvimento dos meios de produção. Tal avanço possibilitou a produção da vida material em uma escala que supera as necessidades de subsistência de toda a espécie. Entretanto, ainda nos deparamos com realidades extremamente miseráveis e que atingem uma grande parcela da população mundial. Uma vez que se torna medida de poder, a concentração das riquezas nas mãos de grandes capitalistas - característica do capitalismo financeiro, com a transformação do capital em fetiche, com qualidades próprias, como a auto-reprodução – impossibilita a eliminação da pobreza. Se a abundância que somos capazes de produzir fosse distribuída, o sistema capitalista entraria em falência. Ele precisa manter a população em constante estado de necessidade: toneladas de comida, por exemplo, são jogadas fora apenas para que os preços dos produtos possam se manter.
O próprio conceito de necessidade vem sendo alterado para que a busca por produtos aumente, em frequências cada vez mais espantosas. Um aparelho celular não é necessidade para a sobrevivência, mas com o aumento da velocidade das nossas operações diárias, ele se tornou imprescindível. Um celular com câmera fotográfica tampouco é necessário, mas a promessa de uma vida mais feliz está vinculada à possibilidade de registrar os momentos dignos de serem lembrados. Um celular do último modelo é ainda menos necessário, já que todas as funções que o modelo que possuo permite executar provavelmente excedem as de que preciso ou efetivamente utilizo, mas, a promessa de que possuí-lo nos aproxima do seleto grupo de pessoas lindas e felizes que aparecem nas campanhas publicitárias,torna fundamental sua aquisição. Dessa forma, quanto mais trabalhamos para criar produtos que nos sirvam e atendam as necessidades, mais nos vemos escravizados e dependentes desses produtos, a partir dos quais criamos nossas identidades.
Outra contradição é com relação ao trabalho, consequência ainda do modelo de produção capitalista. Nunca em nenhuma época da existência humana houve tanta variedade de funções que podem ser executadas. Podemos constatar infinitas áreas de conhecimento relacionadas à medicina, à engenharia, ao direito e etc. O problema, porém, está no mercado,cuja concorrência força os trabalhadores a se tornarem cada vez mais especializados em determinada área  de atuação e na qual possam se destacar, aumentando suas chances de competir. Assim, a busca por estabilidade profissional, hoje associada a essa especialização, aliena o indivíduo e o condena a se tornar,dentre todas as suas habilidades e potencialidades, apenas uma fração de si mesmo. Quanto mais áreas de conhecimento existem, mais especializados e alienados ficamos. Tornamo-nos aquilo em que trabalhamos: somos apenas médicos,engenheiros, advogados.
Com relação às guerras vemos também enormes contradições. Através do iluminismo, que propunha o conhecimento da realidade pelo uso da razão, imaginou-se poder estabelecer uma base lógica que diminuiria a necessidade de se utilizar da guerra para quaisquer que fossemos fins em debate. Pretendia-se que a natureza instável do indivíduo, seus instintos, emoções e sentimentos, seria de vez superada pela racionalidade na condução das relações humanas. Porém, o século XX, tendo sido o século em que ocorreram as maiores guerras da história e no qual se verificou o maior número de mortes, comprovou que ainda precisamos aprender muito sobre nós mesmos.
Vejamos o que acontece com o conhecimento pautado na dominação da ciência. Tudo o que é aceito como conhecimento científico tem que ser universal, ser passível de formulação, ser previsível. Todo o conhecimento que não atende esses requisitos é desconsiderado ou relegado ao domínio da arte. Como associamos ao indefinido a angústia e o medo daquilo que não conhecemos, e, portanto, não o podemos controlar nem saber o que dele esperar, passamos, confortavelmente, a nos orientar pelo que está estabelecido como conhecimento científico, e, portanto, definido. Basta ver como a educação se apoia quase que exclusivamente na transmissão de conhecimentos teóricos, mas pouco faz na transformação desses conhecimentos em vivências que possam ser ditas significativas ou resultem em uma determinada conduta moral. O entendimento do próprio ser, da relação, por exemplo, de suas emoções com a realidade, o conhecimento dessas características individuais e sua valorização não são assuntos de interesse das instituições de ensino, que veem nos resultados para o mercado de trabalho sua maior motivação e nos quais apoiam suas campanhas de marketing: “500 aprovados no vestibular 2014”, por exemplo. Porém a percepção da realidade depende não somente do objeto, mas do sujeito que o observa. Esse sujeito possui características únicas, e por consequência, diferentes daquelas que outros indivíduos possuem. Mas, se o conhecimento que possuímos se dá pela dominação do conhecimento científico sobre as outras áreas do conhecimento humano, também as nossas características individuais tendem a ser generalizadas e homogeneizadas como o são tais conhecimentos. Paradoxalmente, quanto mais variados são os conhecimentos de que a sociedade dispõe, mais estamos nos tornando massificados, produtos de nossa alienação de nós mesmos. A arte, por exemplo, que poderia unificar esse indivíduo de sua alienação racional, está cada vez mais direcionada para o entretenimento. As músicas, filmes, literaturas e etc. que estão ao nosso alcance são, em sua maioria, resultado daquilo que é mais comercializável, não necessariamente de melhor qualidade. E se desejamos cada vez mais conhecer apenas aquilo que já está definido, estamos nos limitando ao que já existe, ao que é massivamente aceito. A originalidade é, então, vista com um mal. E isso é a morte da arte, afinal, a originalidade é sua maior característica. E, por fim, as nossas possibilidades de expressão são reduzidas, nos obrigando a viver uma vida que não diz respeito a quem realmente somos, mas àquele em que nos transformamos racionalmente, de acordo com as conveniências dos estamentos sociais, formando uma linha de produção de seres humanos. Como falar em individualidade sem criatividade, sem autonomia?
Mas de todos os paradoxos, o mais triste é: atingimos toda a liberdade que poderíamos sonhar, com a constante dissolução dos estamentos, das normas, dos regimes totalitários e dominadores – pelo menos por enquanto, afinal os governos fazem pouco mais do que deixar cada um de nós viver a sua vida de acordo com os seus próprios recursos. Nunca se pôde falar tanto, nunca se restringiu tão pouco. Mas assim que as lideranças exercidas pelos Estados deram lugar às grandes corporações capitalistas, entregamo-nos novamente à dominação. Fazemos parte desse jogo denominado consumismo, mascarado de liberdade de escolha.  A única escolha que não podemos fazer, e que é a maior prova de nossa submissão, é não participar. 

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