terça-feira, 24 de março de 2015

Tecnologia, Fragmentação e Coisificação dos Laços Sociais

Escrito pelo Diretor do Grupo Projetar Roberto Guimarães.

Com o progresso tecnológico e científico ocorrido nos últimos séculos, fundamentados na valorização da razão como meio de promover a emancipação da humanidade em relação à natureza, verificou-se uma série de transformações nas relações sociais. O desenvolvimento dos meios de produção e de comunicação causou a aceleração da vida cotidiana e a alteração das relações espaço-temporais. O capitalismo, em seu processo de expansão, vem derrubando todos os obstáculos que se opõem ao seu funcionamento: tradições, compromissos, valores morais e estamentos deram lugar a uma ordem de caráter financeiro e mercadológico. No meio desse turbilhão de mudanças, nesse cenário que inclui guerras mundiais e crises econômicas, o individuo foi profundamente afetado.
A supervalorização da razão e do desenvolvimento técnico produziu indivíduos mecanizados, que substituíram, pouco a pouco, a crença na técnica como meio para sua emancipação pelo apego à técnica como um fim, uma vez que se encontram desconectados dos verdadeiros fins – uma vida digna – em nome dos quais o progresso tornou-se ideologia. Impulsionados pela ordem vigente, veem-se obrigados a atender as condições do mercado, cada vez mais instável e alienante. O desempenho de funções cada vez mais especializadas atende, com frequência, apenas uma parte de todas as potencialidades do homem, o que dificulta a sua realização pessoal. A supremacia da razão e a universalização científica, que desconsidera aquilo que é individual e não generalizável ou passível de formulação, também afastam o indivíduo do reconhecimento de suas próprias potencialidades emocionais e físicas, impedindo a formação de uma identidade integrada e que inclua todas as características da personalidade. A imaginação é tolhida e a capacidade de lidar com o abstrato e o indefinido é reduzida.
Outras transformações no indivíduo são alimentadas pela indústria cultural, que reforça o chamado véu tecnológico. Detentores dos meios de comunicação de massas, as classes dominantes, as mais beneficiadas com a ordem estabelecida, aproveitam-se das melhorias nos meios de propagação da informação e de sua abrangência para impor com mais facilidade sua ideologia, que afeta também as formas de arte, tais como a música e o cinema. Portanto, grande parte da cultura absorvida pelo indivíduo reflete as leis de mercado e o estímulo ao consumo, assim como maquiam as cisões sociais e as incoerências dessa ordem. Apesar disso, as contradições tendem a aparecer no choque entre a ideologia dominante e a vida cotidiana, o que resulta em um indivíduo ainda mais fragmentado e sujeito a normas heterônomas. Afastado de si e incapaz de individualizar-se, através de uma reflexão crítica, por conta da ideologia dominante que quer mantê-lo escravo de suas engrenagens, resta-lhe apenas a submissão. Os poucos que conseguem enxergar a realidade além do véu encontram poucas opções de subsistir na contramão da ordem capitalista.
A expansão do capitalismo tem sido possível por meio da eliminação de tudo o que se opõe à sua fluidez. As tradições e valores morais que regiam as relações sociais tornaram-se obstáculos e vêm sendo descartados. Os indivíduos são estimulados à competitividade sem barreiras éticas, o que torna sua realidade ainda mais instável. Suas necessidades são moldadas pela indústria cultural, que, para manter a ordem vigente, precisa levar o indivíduo ao consumo cada vez mais frequente e impulsivo. Vemos como as propagandas comerciais na televisão, por exemplo, associam ao produto as possibilidades de satisfação, não somente das necessidades materiais, mas principalmente das necessidades morais do ser humano. Ser torna-se Ter. A imagem de felicidade passa a ser vinculada ao próprio produto. As questões humanas são coisificadas, assim como suas relações.
E com a aceleração da vida, promovida pelas constantes atualizações tecnológicas e pela superação das barreiras das distâncias em tempos cada vez menores, tendendo ao instantâneo, o indivíduo se vê obrigado a lidar com condições extremamente transitórias e que se alteram rapidamente, o que afeta sua identidade, ou melhor, impede-o de constituir uma identidade composta de um passado coerente com o presente e de acordo com suas perspectivas de futuro. O indivíduo tem a sensação de que o presente lhe escapa, de que sua vida se torna descontínua. Se a satisfação é coisificada e a identidade está vinculada às características dos produtos, com as variações frequentes dos modismos variam também inúmeros aspectos da personalidade individual em pequenos espaços de tempo. Como pode o indivíduo se reconhecer em uma identidade que lhe pareça sólida?


A dominação ideológica nos faz enxergar apenas os benefícios do "progresso",deixando as suas vítimas esquecidas em suas pilhas de ruínas. Nesse caso, as vítimas somos nós, não eu ou você somente, mas toda a sociedade. O desenvolvimento técnico-científico tornou-se uma forma de violência contra o indivíduo e sua autonomia. A fragmentação alimenta a frieza e nos torna incapazes de amar. Às luzes da razão, perdemos muitos dos vestígios de nossa humanidade e tornamo-nos coisa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Todas as imagens utilizadas nos artigos foram extraídas do Google Imagens