Escrito pelo Diretor do Grupo Projetar Roberto Guimarães.
O Projeto de redução da
maioridade penal da idade de dezoito para dezesseis anos tem gerado polêmica e
consequentes discussões fervorosas, principalmente nas redes sociais. Porém,
tais discussões estão, em sua maioria, restritas ao posicionamento contrário ou
em favor do projeto, e pouco se tem falado sobre os porquês de uma ou outra
posição. O intuito do artigo é apresentar minha opinião e os fatores que a
embasam.
Uma visão coerente, porém incompleta.
O Estado oferece ao indivíduo com
a idade de dezesseis anos ou mais a possibilidade de participar da escolha de
seus governantes através do voto. Isso indica o entendimento, por parte do
Estado, de tal indivíduo como capaz de conhecer, processar e discernir sobre
tão importante e complexa tarefa, ato reconhecido pela população como o mais significativo
de uma democracia. Ao estar apto para o voto, entende-se que o indivíduo também
reconhece a relação de sua escolha com as consequências possíveis. Isso
significa que pode ser responsabilizado por suas ações.
É esta a noção que move parte
daqueles que defendem a redução da maioridade penal: a ideia de que o
indivíduo, sendo capaz de roubar, matar, e etc., deve ser capaz de responder como adulto por tais atos, uma vez que é capaz discernir sobre suas escolhas. Esta
argumentação, aparentemente justa, parece suficiente para a decisão em favor do
Projeto e, caso não houvesse outras considerações cruciais, eu também decidiria
em favor da medida. Mas, infelizmente, esse não é o caso.
À procura de justiça.
Quando falamos em justiça,
devemos ter em mente pelo menos dois fatores importantes:
Primeiro, as penas atribuídas aos
crimes não tem como função principal a de “fazer justiça”, no sentido de
compensação ou retaliação, mas sim a de evitar novos atos criminosos, através
do exemplo propiciado por aqueles que são punidos. Por exemplo, vejamos o caso
de um assassinato: por maior que seja a pena atribuída ao assassino, o
homicídio não pode ser revertido. Portanto, de que serviria, nesse caso, a retaliação
senão para saciar os desejos de vingança? Melhor seria punir de forma a
intimidar agressores potenciais e, com isso, inibir novos assassinatos. Uma
vida perdida no cárcere por uma pena de prisão perpétua é, certamente, um
exemplo bastante impactante e, consequentemente, eficiente.
Infelizmente, porém, muitos de
nós recebemos uma educação baseada no “olho por olho”, o que deturpa o
entendimento dos propósitos das leis e impacta nos posicionamentos. Assim,
quando pensamos em reduzir a maioridade penal o fazemos motivados, em parte,
pela ideia de que os infratores devem pagar pelo que fizeram, mas não pela
expectativa de que essa medida diminui ou resolve a criminalidade, através do exemplo
e consequente inibição que as punições aos jovens na faixa de dezesseis a
dezoito anos pode gerar.
Em um Estado como o nosso, no
qual as leis são antigas e os órgãos responsáveis pelo seu cumprimento são uma
piada, aumentar a faixa etária suscetível de pena criminal não é garantia de
melhoria. Basta vermos os índices de reincidência à criminalidade dos
indivíduos que já foram presos, cerca de setenta por cento (70%). Somente esse
índice já indica que o foco dos setores responsáveis pela segurança não pode
estar na redução ou não da maioridade penal, mas sim no estudo das condições
que levam o indivíduo ao ato criminal e na reforma do sistema carcerário,
visando aumentar as chances de reintegração social dos ex-detentos.
Segundo: é passível de julgamento
aquilo de que se tem consciência e sobre o que se tem liberdade de escolha.
Caso a escolha não seja possível, o julgamento não faz sentido. Vejamos um
exemplo: ninguém pode ser julgado pelo ato de comer, uma vez que comer é um ato
natural e necessário à manutenção da vida, o que significa que não pode deixar
de ser executado. Como um dos direitos do ser humano é o direito à vida, comer
para sobreviver é também um direito. Sendo assim, podemos ver que aquele a quem
o Estado não garante comida, poderia dispor de quaisquer ações para
consegui-la, sem que isso resultasse em pena – e mesmo sob o risco de pena, o
organismo ainda assim lutaria para saciar a fome e evitar a morte. Isso porque
o Estado que regulamenta e pune deve dar condições e informação para que o
indivíduo cumpra suas determinações.
Boa parte dos atos criminais
acontece para a obtenção de meios para manter o organismo vivo e ou para
aumentar as chances de sobrevivência. E vejam que quando falamos melhorar as
chances de sobrevivência, temos que incluir aqui tudo aquilo que é vendido pela
indústria cultural como necessário. Por exemplo, o sentimento de pertencimento
à sociedade, seja pela possibilidade de possuir aquilo que gera identificação
com o meio ou pela possibilidade de adesão às suas instituições, é uma
necessidade moral. Então, possuir um emprego é uma forma de pertencer, não
somente de gerar renda. Em um país com
altos índices de desemprego, de empregos instáveis e informais, quais são as
possibilidades de quem não possui emprego estável? Outro exemplo: em uma
sociedade tecnológica, na qual a aceitação do outro depende, em parte, da
possibilidade de conexão com a internet, quais são as oportunidades para
aqueles que não possuem os meios de acesso – aparelhos celulares, computadores
e etc.? Boa parte da população no Brasil se encontra nessa condição de
exclusão. Um último exemplo: em uma sociedade consumista, determinadas
comunidades são constituídas pela identificação na posse. Se o indivíduo não
possui carro, não acessa alguns grupos; se não possui o tênis da moda, não
acessa outros; e assim por diante. Quando julgamos que o indivíduo não
precisava ter roubado um celular, fazemos-lo partindo da ideia de que celular
não é necessidade básica. Mas, se você possui emprego, casa, comida, veículo,
família, produtos da moda, e etc., certamente não tem ideia de como tudo isso
lhe faria falta e impactaria em suas relações sociais. Pense em quantas portas
são fechadas para aqueles que não condizem com os padrões de consumo atuais. É
fácil concluir quando estamos confortáveis em nossos sofás.
É muito importante reforçar que
não estou fazendo apologia aos atos criminosos, tampouco os estou justificando
para torna-los aceitáveis. Crime tem que ser punido sim, mas punido também deve
ser um Estado negligente quanto às condições básicas de sobrevivência de sua
população. O intuito aqui é apenas mostrar que há muito mais por detrás da
decisão de se cometer um crime, e que a luta pela sobrevivência em um Estado
incapaz pode tomar rumos diversos. Quando o Estado não provê possibilidades, o
indivíduo predispõe-se com mais facilidade à violação das leis. É, portanto, na
ausência do Estado que devem estar assentadas nossas preocupações.
Consequências da aprovação do Projeto
Vejamos apenas algumas dentre as consequências
possíveis da aprovação do projeto de redução da maioridade penal no Brasil:
Aumento significativo do número de detentos: se
os complexos carcerários são atualmente insuficientes para acomodar os presos,
imagine quanto dinheiro público seria gasto (e desviado) na tentativa de
acomodar o novo contingente. Vale notar que o custo com um detento é inúmeras
vezes maior do que com um estudante. Aumentar o sistema prisional é retirar
recursos que poderiam ser utilizados na educação preventiva.
Perda da humanidade: os indivíduos que são
submetidos ao regime carcerário não encontram condições humanas de tratamento,
tampouco recebem orientações e oportunidades suficientes para a condução da vida
fora da cadeia. Tendem a piorar seus comportamentos em contato com tais
condições. O indivíduo na faixa etária de dezesseis a dezoito anos está mais
suscetível aos efeitos dessa realidade, e sua reclusão, nas condições atuais,
pode deteriorar facilmente suas chances de convivência em sociedade. Lembremos
que, querendo ou não, esses indivíduos retornarão às ruas, cedo ou tarde, e de
sua humanidade também depende nossa segurança. Quanto pior for o tratamento que
receberam, pior será o tratamento que nos repassarão os que voltarem a cometer
atos criminosos.
Silenciamento da opinião pública: a opinião pública é
um importante elemento de pressão política, e é ela que orienta muitas ações
governamentais. Infelizmente, porém, a opinião pública, por conta do baixo grau
de instrução médio e da pouca informação da população, busca, com frequência,
plasmar em um único fator toda sua frustração com relação ao cenário de
violência, ou seja, busca um culpado para poder exorcizar seus medos, mesmo que
tal fator não represente a única ou a principal causa de tal cenário de
insegurança. O risco que corremos se aprovado o projeto de redução da
maioridade penal é o silêncio da opinião pública, satisfeita por uma solução
que não somente é insuficiente como pode se tornar prejudicial à segurança da
população, conforme mostrado acima.
Conclusão
Por uma questão de coerência e de
senso de justiça, na base do “olho por olho”, a redução da maioridade penal da
idade de dezoito para dezesseis anos parece uma boa medida a ser tomada. Porém,
no Brasil, com todas as faltas do Governo para com sua população, tal medida
pode tornar-se prejudicial à segurança que pretende promover. Portanto, mesmo
que a ideia pareça boa, se aplicada no cenário real e atual, promete mais
reveses do que ganhos, e por isso sou contra a aprovação dessa medida nesse
momento. Caso tenhamos no futuro um Brasil com um sistema educacional
abrangente, com as desigualdades sociais reduzidas e com um sistema carcerário
eficiente na ressocialização, poderei repensar minha posição.
Parabéns, Roberto. Texto excelente e que nos leva à uma maior reflexão, entre nossos anseios e a realidade que aí está.
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